Compare Produtos, Lojas e Preços

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A teimosa engenharia do senhor Gurgel

Mais do que um engenheiro, João Gurgel é um inventor. Um homem que já construiu um revólver a gasolina, um dispositivo para traçar hipérboles, que projetou uma cidade circular e fabrica automóveis movidos a gasolina, álcool e eletricidade. Que já foi considerado louco mas provou ser sensato.


Gurgel

No final de 1949, ao invés de apresentar o projeto de um guindaste como trabalho de conclusão do curso de engenharia mecânica na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, o estudante João Augusto Conrado do Amaral Gurgel apresentou o de um carro com motor de dois cilindros.

Quase foi reprovado. O professor nem quis olhar aquela "bobagem" e arrematou a desaprovação com uma frase que Gurgel nunca mais esqueceu: "Automóvel não se constrói. Se compra. Põe isso na cabeça".

O estudante fez às pressas o projeto do guindaste, formou-se engenheiro, mas o conselho do professor foi tão inútil quanto desafiador: Gurgel empenhou-se tanto em provar o contrário que hoje é um dos grandes fabricantes brasileiros de veículos.

Entre o projeto de seu carro de dois cilindros e o de seu último lançamento, o XEF, a vida profissional desse paulista de quase 57 anos foi marcada pela teimosia, pela insistência em inovar, em criar soluções novas para problemas tão distintos quanto um carro elétrico e a estrutura de uma cidade, por exemplo.

Não foi sempre que conseguiu ser compreendido, mas algumas de suas idéias — como o próprio carro elétrico, do qual Gurgel é o único fabricante brasileiro — foram bem-sucedidas, comprovando que ele não é apenas um lunático, como o chamavam há alguns anos. Teimoso, sim. E muito.

Foi com um mês de teimosia — e, naturalmente, seus conhecimentos de química e metalurgia — que Gurgel e um amigo descobriram como reproduzir o processo de anodização do aluminio, durante os anos 40. Isso, até então, era uma exclusividade da indústria norte-americana, que os dois pretendiam usar no tratamento de pistões; mas um colar de alumínio anodizado que uma tia de Gurgel trouxe da França mudou os rumos da experiência: ele e o amigo acabaram ganhando muito dinheiro fabricando colares idênticos.

A LANCHA ANFIBIA

Foi com parte desse dinheiro que Gurgel construiu uma lancha anfíbia, com motor traseiro de avião (de 70 cavalos), três rodas e uma hélice. Seu pai se arrependeria amargamente de ter emprestado a garagem para a construção desse engenho nunca visto pelas ruas de São Paulo: quando ele saiu pelo Jardim América, fazendo um barulho infernal, por pouco a polícia não fez a primeira apreensão de um objeto não identificado. Gurgel teve de se comprometer a nunca mais sair nas ruas com aquilo. Ainda passeou com a lancha na represa de Guarapiranga, mas depois vendeu-a.

Sua paixão pelos veículos, particularmente pelo automóvel, vem desde os três anos, quando Gurgel subia no estribo, passava para o pára-lama, o capô e daí para cima da capota do bravo Ford modelo T de seu pai.

Um dia, deu a partida e jogou o carro contra a parede da garagem.

Aos nove anos, já estava bem claro que aquele menino não seria advogado, como o pai; muito menos fazendeiro ou fabricante de calçados, como os avós. Ele gostava de ler livros de física e mecânica, mexia em rádios, ia no ferro-velho buscar câmbios estragados para desmontar em casa... O quarto vivia cheio de trastes; de vez em quando, para o bem dos estudos regulares, seu pai ia lá e fazia uma faxina geral.

Ali Gurgel transformava triciclos em bicicletas; ficava de olho na marcenaria ao lado da casa para depois construir seus próprios piões e bilboquês. Franca (SP), onde nasceu e morava, era uma cidade pequena, não tinha mais de 20.000 habitantes.

Gurgel tem agradáveis recordações dessa época: os almoços com mais de setenta pessoas na casa do avô; a visita que aos 6 anos fez a seu pai, capitão das tropas paulistas, numa frente de batalha da Revolução de 32; os pagamentos que fazia aos primos para que fossem ao cinema assistir e depois lhe contar os episódios de Flash Gordon, que perdia quando ficava de castigo... Convencido de que boa educação era o que podia deixar de melhor para os filhos, seu pai exigia que todos estudassem.

Deu certo: os quatro filhos se formariam engenheiros na Politécnica; a filha casaria com um engenheiro. E Joáo Augusto, mais do que a vocação de engenheiro, levou para a vida adulta a de inventor:

— Estudando muito pode-se chegar a tocar piano muito bem — diz ele. — Mas ninguém vai compor alguma coisa se não tiver um dom. Eu acho que tenho esse dom na mecânica. Aos 13 anos, durante a guerra, ficava fascinado com o desenvolvimento técnico dos alemães — as bombas V1 e V2, os aviões, a turbina... Aquilo que eu antes via no Flash Gordon estava se tornando realidade. Desde essa época cismei que ia construir um avião, e isso ainda é um sonho meu.

Quando deixou o ginásio marista de Franca e foi estudar em Araraquara, aos 16 anos, Gurgel inventou um revólver a gasolína: "Eu injetava a gasolina no cilindro e usava uma vela de ignição. É claro que esse revólver não tinha a potência da pólvora, mas atirava". Quando foi morar com uma tia, na capital, antes do vestibular para a Escola Politécnica, desenvolveu um instrumento para traçar curvas elípticas.

Gurgel Quando era o engenheiro mais bem pago da Ford, ele se demitiu para fazer sua fábrica.

O ESPORTISTA

Nessa época de estudante em São Paulo, Gurgel também encontrava tempo para jogar tênis e ganhar medalhas de salto em altura. Um esportista, nada de boemia.

Magro, 58 quilos, Gurgel é um homem bem conservado, pensa e se movimenta com agilidade. Chega a trabalhar doze horas por dia. Tem algo de missionário ou até caudilhesco. Anda por dentro de sua fábrica examinando tudo de perto, tocando, perguntando. Não fuma e fez uma verdadeira guerra santa contra o cigarro. Tentou de tudo, despediu gente, criou códigos, revezamentos, cabines especiais para fumantes, deu conselhos — e, no fim das contas, deve ter salvo muitos pulmões.

Hoje, ele ainda é capaz de sair de casa à noite e ir sozinho para a fábrica fazer alguma experiência:

— A satisfação psicológica — explica Gurgel — é uma espécie de energia. A mesma que faz um cara pular três dias no carnaval e depois cansar com uma corridinha à toa. Eu sou movido a entusiasmo.

Ainda durante o curso na Politécnica, ele trabalhou no Instituto de Aeronáutica do IPT — e lá cresceu o fascínio por turbinas a jato. Formado, seu primeiro emprego foi na Cobrasma, como chefe do departamento de locomotivas a diesel. Nos elevadores Atlas, ficou apenas uma semana: quis arriscar algumas idéias novas sobre faiscamento de motores e o chefe achou que era muito cedo para palpites. Pediu demissão e pouco depois estava na General Motors, através da qual conseguiu uma bolsa para estudar engenharia automobilística na fábrica da Buick, perto de Detroit, nos Estados Unidos.

No Brasil dessa época, os carros eram apenas montados; lá, eles eram fabricados. Gurgel ficou deslumbrado: "Os Estados Unidos me pareceram um país de fadas". As dificuldades com o inglês não impediram que ele evoluisse nos estudos e ganhasse uma menção honrosa por um projeto que diminuía de uma semana para um dia o tempo dos cálculos de moldes.

Gurgel voltou ao Brasil em 53. Trabalhou nos projetos das fábricas da GM e depois da Ford. Casou com 31 anos; sua mulher, Carolina, tinha 17. Teve três filhos: Fernando, que hoje tem 24 anos, é quintanista da Politécnica e nas horas vagas ajuda o pai na fábrica; Cristina, de 22, optou por estudar administração de empresas; e Maria Cecilia, de 17, está terminando o colegial. "Em 58, quando nasceu o Fernando — conta Gurgel — eu decidi que estava na hora de ficar independente. Foi um choque, pois eu era o engenheiro mais bem pago da Ford e tinha todas as regalias como assistente de diretoria. Antes, eu era parte da engrenagem de uma empresa que tinha 600, 700 mil empregados: depois, me tornei o cabeça de uma pequena empresa. Me senti muito mais feliz, apesar das dificuldades, com a possibilidade de pensar uma coisa à noite e começar a realizá-la no outro dia de manhã.

Essa pequena empresa de Gurgel — a Moplast, que fazia moldagem de plásticos — começou a colocar nas ruas de São Paulo os primeiros luminosos de acrílico do Brasil, substituindo os tradicionais tubos de neon. Na verdade, esse ramo se constituia apenas em um meio de ganhar dinheiro. O que Gurgel queria mesmo era construir automóveis.

Cidade circular Uma das idéias de Gurgel: a cidade circular, com muito verde e pouca poluição.

Além dos luminosos, começou a fazer miniaturas de Karman Ghias para crianças. Até o dia em que conseguiu convencer a Volkswagen a lhe fornecer plataformas e daí para a frente a produção foi de carros de verdade, como sempre havia sonhado.

Durante esses três anos, de 61 a 64 (quando vendeu a Moplast), Gurgel também entrou num terreno novo — o da competição.

Com uma equipe de karts que tinha pilotos como Emerson Fittipaldi e Moco, ele chegou a ganhar todos os campeonatos realizados no pais, mas as sucessivas viagens, a correria, acabaram atrapalhando sua vida familiar.

— Aquilo era um pequeno circo, uma Fórmula 1 em pequena escala — conta ele. — Na realidade, eu acredito na competição apenas como pesquisa, não como negócio. Quando o Emerson se meteu a fazer um carro, eu disse a ele que aquilo era uma bobagem, que ele devia continuar correndo para os outros. Se para as grandes fábricas o retorno já é difícil, para quem não tem nada, pior ainda.

CIDADE DO FUTURO

Em 69, ao lado da sua concessionária Volkswagen em São Paulo, Gurgel fundou uma fábrica com o seu nome; e três anos depois estava fabricando carros com plataforma, motor e câmbio VW. Em 73, depois de conhecer uma indústria de fibra de vidro de Rio Claro, resolveu transferir sua fábrica para lá. Estava cansado da confusão de São Paulo, do aperto, do barulho — "da barbaridade que é aquilo lá". Propôs à Prefeitura aquela "loucura" que fazia sentido: fabricar carros elétricos, transformar Rio Claro numa espécie de protótipo ou cobaia da cidade do futuro. Sua idéia: instalar tomadas de reabastecimento de baterias em volta da praça, como se fossem orelhões ou caixas de correio.

— Isso foi antes da crise do petróleo, em julho de 73. A crise foi em novembro. No início, a turma achava uma loucura; quando você tem uma idéia nova, a reação é muito grande. Antes, quando eu só queria fabricar carros, muita gente fazia pressão sobre minha mulher para que ela me tirasse isso da cabeça. Diziam que fabricar automóveis era coisa para multinacional. Quando eu quis fabricar carros elétricos, então, nem se fala. Todo mundo dizia: "Pronto, agora ele endoidou de vez".

A Prefeitura de Rio Claro emprestou 500.000 cruzeiros e fez a terraplenagem de uma área de 360.000 m2 onde só havia mato, capim e vacas pastando. — Nem luz elétrica havia por aqui — conta Gurgel. — Depois, fui ao BNDE e consegui 7,5 milhões para terminar a fábrica, o menor empréstimo que o BNDE já fez até hoje. Eles até perguntaram se eu não queria levar mais; não aceitei porque não teria como pagar. As dificuldades foram muitas, nosso plano foi boicotado por todos os lados. Hoje, a Gurgel é a pioneira na fabricação de carros elétricos na América Latina e a primeira a exportar carros a álcool.

— A situação melhorou, mas ainda temos pouco apoio — continua ele. — O carro elétrico é uma parada, é difícil vender uma coisa nova. Essa mesma experiência eu tive quando comecei a fabricar os luminosos de plástico e acrilico para substituir o neon. Todo mundo achava que ia cair, quebrar, derreter. Quando você tem uma idéia e não realizou nada, te consideram um louco. Quando já realizou alguma coisa, a loucura já não é tão grande. Até que acabam dizendo: "Ele tem visão".

A Gurgel deu certo e hoje os planos são muitos: já está no BNDE um projeto para ampliar a empresa, passando dos atuais 140/150 carros por mês para uma produção em torno de 320; está comprado um terreno no Panamá, onde talvez ainda este ano seja iniciada a construção de uma fábrica que produzirá veículos Gurgel para o mercado do Caribe; e um dia, não se sabe quando, a Gurgel precisará ter o seu próprio motor e a sua própria mecânica, para continuar crescendo.

Gurgel Ele próprio fiscaliza a fábrica, olhando tudo de perto, examinando, perguntando...

Gurgel pensa também em abrir o capital da empresa: "Acho muita responsabilidade entregar a coisa na mão de um filho. Talvez fosse um presente de grego para o meu filho".

E ainda há outros projetos. Dentro de um ano e meio, no máximo, Gurgel quer pôr para rodar o protótipo de um carro popular, "O carro do trabalhador brasileiro, algo entre automóvel e bicicleta, muito simples, mas de uma concepção revolucionária. Estou trabalhando nisso". Suas gavetas, arquivos e armários nas casas de Rio Claro e São Paulo (na verdade, ele e a família moram nas duas cidades), estão cheias de desenhos e rabiscos. Páginas de cadernos, capas de revistas, guardanapos de restaurantes, no papel que estiver mais próximo Gurgel desenha e anota o que lhe vem à cabeça. Depois, calhamaços de cálculos. Mais tarde, se a idéia for boa, a patente. "Temos uma quantidade fantástica de patentes. Atualmente, estou desenvolvendo um gerador eólico (movido a vento) e pesquisando a construção de residências à prova de som, para que se possa morar com sossego numa cidade barulhenta. O próximo passo, para mim, é entregar a direção da empresa a profissionais especializados e retirar daqui de dentro a parte criativa. Vamos construir um centro de pesquisa na chácara aqui ao lado e vender projetos para o governo ou outras empresas. A idéia que não puder realizar, eu vendo. A grande frustração do inventor e de quem trabalha em pesquisa é não ver realizado o que ele imaginou".

Gurgel fala de coisas como os projetos de carros estranhos, que se acumulam na sala de projetos: — Eu, na realidade, sou um misto de industrial, projetista e inventor — define-se Gurgel. — Sempre tive um lugar onde ganhar dinheiro e, ao lado, um outro onde gastar, fazendo o que eu queria fazer. Tem mil coisas que eu ainda gostaria de fazer, mas vejo que minha vida está acabando e não vou conseguir fazer nem uma fração delas. É um pouco angustiante, claro. As vezes eu acho que o melhor para mim seria ter ido trabalhar na Disneylândia, ou numa fábrica de brinquedos.

1 comentário

Anônimo disse...

acho tbm q o senhor é meio visionario
e o governo brasileiro tinha q dar muito apoio aos seus projetos
inclusive dispondo de pessoal especializado para ajudar e somar nas melhores ideias

Postar um comentário

Comente aqui. Me xingue, me elogie, fale besteira, mas comente. Este blog vive dos seus comentários, não de anúncios publicitários.